Ballettikka Internettikka: The Performativity of Technology
by Eunice Gonçalves Duarte
Paper presented at the 6th SOPCOM Congress – Portuguese Association of Communication Sciences, 14–18 April 2009, Lisbon, Portugal.
VI Congresso da SOPCOM (Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação), Universidade Lusófona, Lisboa, 14 a 18 de Abril de 2009.
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Abstract
In 2001, the Slovenian artist Igor Stromajer, in a partnership with composer Brane Zorman, presented the performance “Ballettikka Internettikka“. This performance initially intended to tell/show/dance the history of ballet through a series of images captured and broadcast live for the Internet.
Since then, they have been presenting (and will continue presenting until 2011) several variations of the piece, integrating it in what they have called “low-tech solutions for intimate guerrilla strategies”.
Currently, “Ballettikka Internettikka” is a political play that defies not only the traditional notions of theatre and performance but also intends to be a social statement. Stromajer and Zorman invade theatre spaces such as The Bolshoi or La Scala, identify the play with the Tchetchenian terrorists’ acts, place a robot as a main character, always with the goal of creating emotions.
If we consider that theatre and performance, since its beginnings, always made use of technology (trapdoors, smoking machines, etc) in order to communicate emotions to its audience – is it the difference with “Ballettikka Internettikka” that it made technology as its main aesthetic? And, due to the fact that Stromajer’s nad Zorman’s low-tech has, from year to year, become more and more hi-tech – can one say that the history of “Ballettikka Internettikka” is also the history of the use of technology in performing arts?
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Ballettikka Internettikka:
A performatividade da tecnologia
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
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Quando em 2001 o artista esloveno Igor Stromajer apresentou, juntamente com compositor Brane Zorman, a performance Ballettikka Internettikka, pretendia, na altura, “contar/mostrar/dançar” a história do ballet através de uma série de imagens capturadas e transmitidas ao vivo para a Internet.
Ballettikka Internettikka – part one[1] assentava na apresentação de um corpo – o de Stromajer – enquanto intérprete de código de HTML e Javascript[2]. A performance mostrava esse corpo “capturado” em frames estáticas, registado e transmitido em real time – com um delay de 20 segundos entre cada imagem transmitida –, oferecendo ao espectador uma dramaturgia descontinuada causada pela espera da imagem seguinte. Explica Igor Stromajer no seu site Intima:
«those voids (those invisible 20 seconds) are part of the narrative as well, the narrative of the missing, which constitutes parallel stories – such as smoking or eating an apple… related to the theories of the viewer-reader-spectator that constructs the rest of the story in his/her mind … to hypernarratives» (2001: online)
A baixa qualidade dos meios tecnológicos usados pelos artistas para a execução da sua performance é integrada na acção, tornando-a indispensável à contextualização da peça. O espectador fica portanto responsável por preencher os espaços deixados em branco pela tecnologia e por descobrir um caminho ao longo da narrativa.
No entanto, este caminho (do espectador pela história) não é feito através de uma intervenção activa – como acontece com as histórias interactivas, os jogos e outras peças artísticas que usam as plataformas virtuais como suporte – mas sim através da partilha de um momento no qual espectador e performer se encontram num espaço virtual.
Desde então, Stromajer tem vindo a apresentar (e continuará a apresentar até 2011) diversas variações da peça. Em 2002, surge uma nova apresentação: Ballettikka Internettikka – part two.
Nesta segunda edição do seu “Internet Ballet”, Stromajer propõe colocar em prática uma série de tácticas de guerrilha: o artista invade de forma ilegal um espaço e nele executa a sua coreografia. Esta obra tem como finalidade comunicar e provocar emoção no seu público, esperando que este assuma o lugar de testemunha directa – ou até mesmo de cúmplice – da acção. E esta abordagem passará a ser a comum em todas as versões apresentadas a partir de então.
Uma das premissas clássicas das artes performativas é a de se encontrar o ponto em que a arte comunica com o seu público e, apesar de a convenção teatral manter o público separado da acção[3] (palco versus plateia), não se espera outra coisa dele senão que seja imergido na peça.
Se considerarmos que desde sempre as artes performativas se socorreram da tecnologia (alçapões, máquinas de fumo, etc.)[4] para comunicar emoções ao seu público, a diferença de Ballettikka Internettikka será o facto de ter feito da tecnologia online a sua estética primordial? E, tendo em conta que este low tech de Stromajer de ano para ano tem se tornado cada vez mais high tech, não poderemos dizer que a história de “Ballettikka Internettikka” é também a história do uso da tecnologia digital na performance?
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Dançar (n)a tecnologia
Igor Stromajer, no seu vasto projecto online a que dá o nome de Intima Virtual Base[5], onde, entre várias obras, encontramos Ballettikka Internettikka, integra a peça na sua estética de guerrilha artística:
«Ballettikka Internettikka is a series of tactical art projects which began in 2001 with the exploration of internet ballet. It explores wireless internet ballet performances combined with guerrilla tactics and mobile live internet broadcasting strategies» (Stromajer, 2002: online)
Neste sentido, a dramaturgia da peça é construída em torno do conceito que Stromajer define como “low tech solutions for intimate guerrilla strategies”, conceito este que consiste no uso de sistemas básicos de captação (filmagem) das performances, realizadas em locais ilegais ou fora dos contextos normais das programações artísticas, e transmitidas, com uma qualidade low tech, em directo para a Internet.
Apenas um ano após a primeira apresentação de Ballettikka Internettikka, Stromajer e Zorman adquiriram dispositivos tecnológicos e know-how técnico que lhes permitiram transferir a performance de um local fixo e seguro para o perigo das invasões ilegais e da fuga[6]. A performance passa a ser também a performance dos meios tecnológicos digitais. É esta tecnologia wireless que permite a sua formatação contextual.
Já não se trata apenas de um corpo que dança, trata-se antes de mostrar a dança num espaço onde ela não deveria estar, interpretada pelo mesmo corpo que num momento dança, no outro está em fuga e, ainda noutro momento, manuseia com destreza os equipamentos tecnológicos necessários à transmissão. O performer aqui não só interage com a tecnologia, ele domina-a.
Se em Ballettikka Internettikka – part one, os 20 segundos de espera entre cada frame são essenciais a uma dramaturgia da interrupção, em Ballettikka Internettikka – part two, pelo contrário, os meios tecnológicos não podem falhar na sua transmissão. É desta transmissão ininterrupta que os contextos da peça são comunicados e partilhados ao espectador.
As imagens são capturadas pelos próprios artistas durante a realização das diferentes acções da performance: invasão, dança e fuga, sem qualquer edição prévia[7]. O que a câmara capta é o que é transmitido, mesmo que isso signifique transmitir planos mal enquadrados e com pouca (ou nenhuma) iluminação, imagens cheias de grão, etc. Mas é esta baixa qualidade de transmissão de imagens que é pretendida por parte dos artistas.
Curioso é que a cada nova apresentação da performance, já que a evolução tecnológica é extremamente veloz, também os dispositivos usados por Stromajer e Zorman se vão tornando cada vez mais high tech, como gadgets saídos de um filme de espionagem. No entanto, Stromajer e Zorman insistem que o equipamento que usam é bastante comum e que qualquer utilizador de computadores o saberá manusear.
Actualmente, as webcams têm cada vez mais qualidade de imagem, as ligações wireless estão mais estáveis e os telemóveis tornaram-se numa mescla de meios de comunicação. O low quality tem, por isso, vindo a ganhar mais qualidade. É até mesmo possível afirmar que o high tech de 2002 é em 2009 low tech. Como consequência desta evolução tecnológica, os contextos artísticos da performance poderiam ser abalados, mas Stromajer e Zorman continuam a defender um ambiente low tech, nem que para isso tenham de ludibriar o momento de captação[8], pois é essa imagem crua que permite criar no espectador uma expectativa face ao perigo enfrentado pelos performers – num efeito de “emoção em directo e ao vivo”.
Ballettikka Internettikka acaba, por isso, por se distanciar do chamado “net art conceptualism”[9] para nos apresentar uma tragédia teatral: a emoção, a paixão, a pantomima e a música invadem a performance, fundindo-a fortemente com os meios tecnológicos online que a captam e a medeiam. A tecnologia passa a ser uma necessidade da performance e não apenas um elemento de espectacularidade.
Bojana Kunst escreveu no seu texto “Ballettikka Internettikka”, para o festival Cynetart, sobre esta relação performance/tecnologia, definindo-a como sendo afectiva e efectiva:
«a very specific understanding of technology, which is being used not only in the effective but also in an affective way: disclosing the desires, sensations and utopian sides of contemporary technological connections» (Kunst, 2007: online)
Em Ballettikka Internettikka descobre-se uma relação íntima – interpessoal até. O que se pretende não é uma relação humano-máquina mas uma relação humano (performer)-humano (espectador), mediada pela máquina, permitida pelas plataformas online.
Anxo Albuin González diz-nos, no texto “Algumas considerações sobre a possibilidade de um teatro virtual”, que o objectivo da performatividade contemporânea é encontrar em cada obra a inovação e não o virtuosismo artístico:
«Os performers não são virtuosos e o público, que assiste a presenciar uma existência única, é conhecedor disso.» (González, 2007: 40-41)
Acrescenta ainda, citando Guilherme Gomez Peña, que a área das artes performativas é obcecada pela inovação e essa obsessão arrasta-a para a fascinação pelo tecnológico, integrando a tecnologia na performance como dispositivo inovador.
Logo, correrá a tecnologia online o risco de ser apenas um elemento fútil nas artes performativas?
Em contrapartida, podemos afirmar que Ballettikka Internettikka não pretende nem a espectacularidade nem o virtuosismo da tecnologia online, antes tem um papel bastante específico para ela.
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O “realismo” da interface
Voltando a nossa atenção para a história que nos é representada em Ballettikka Internettikka, apesar de esta se ir alterando a cada apresentação, deparamo-nos sempre com uma acção que, por ser apresentada em “tempo real”, é facilmente perceptível como sendo também “real”, embora toda a sua contextualização nos reporte para um imaginário mítico[10].
A mise-en-scène da transmissão da peça está mais próxima da reportagem jornalística do que da ficção[11]. É neste ponto que a tecnologia online ganha o seu lugar de destaque; é através das imagens low quality captadas durante a performance/ataque que encontramos a noção de “paixão pelo Real”, discutida por Slavoj Žižek em Bem-Vindo ao Deserto do Real. Diz-nos o autor que esta “paixão pelo Real” é o desejo de encontrar o objecto do “Real” que, já em si, não é mais do que uma paixão pela aparência. Diz a respeito dos actos terroristas ao World Trade Centre:
“Para a grande maioria do público, as explosões do World Trade Center foram acontecimentos televisivos, e quando olhámos vezes sem conta para a imagem de pessoas aterrorizadas correndo na direcção da câmara, fugindo da gigantesca nuvem de pó provocada pelo colapso das torres, não terá sido esse enquadramento uma reminiscência das cenas espectaculares dos filmes-catástrofe, um efeito especial que terá ultrapassado todos os outros, visto que – como sabia muito bem Jeremy Bentham – a realidade é a melhor aparência de si mesma?” (Žižek, 2002: 26-27)
A partir desta ideia, analisemos então a versão de Ballettikka Internettikka “BRVI – Real Video”, de 2003. Esta peça consiste numa montagem de imagens de duas acções de guerrilha/terrorismo distintas: a primeira diz respeito à invasão-performance de Stromajer e Zorman do Teatro Bolshoi (Moscovo), em Março de 2002. A segunda é a invasão homicida/suicida dos terroristas chechenos do Teatro Dubrovka (também em Moscovo), em Outubro de 2002.
Nesta versão, Stromajer e Zorman enfatizam a sua “paródia” numa acção sobre o real, ao mesmo tempo que transubstanciam um acto real em obra artística[12]. Ao fazerem-no, identificam-se não com a causa reivindicada pelos terroristas mas com uma “aparência do real” causada pelo seu objecto artístico – tanto os performers de Ballettikka Internettikka como os terroristas chechenos expressam através de um acto ilegal a manifestação do sacrifício por um conceito, por um ideal[13].
«The conceptual parallels might seem tenuous between the bodily sacrifice of homicidal-suicidal terrorists and the ballet dancer whose body is surrendered in the name of art. But as the project develops, a collage is forming around Ballettikka Internettikka, and the artists seem happy to let those images sit together and coalesce until they form something mythical,» (Seaver, 2006: online)
Converte-se então em mitologia o que já em si busca o ideal mítico do mártir: aceita-se o sofrimento de alguns (i. e., o terrorismo) pela libertação de uma nação. Já em “Illegallikka Robottikka”, assistimos a esta representação do “real” de forma quase oposta, ou seja, transfere-se para uma acção real o que só poderia ser imaginado no universo da ficção científica. Em “Illegallikka Robottikka” – performance realizada em 2004, numa invasão à cozinha do Teatro La Scala (Itália) –, os artistas delegam num robot[14] astronauta a responsabilidade da performance. Nesta versão, os artistas são simultaneamente intervenientes – manipulação de máquinas – e espectadores – também assistem em tempo real às imagens enviadas pelas câmaras wireless que vão registando a dança do robot e são, por isso, surpreendidos por elas. Curiosamente, as imagens levam-nos para um imaginário muito presente em séries como The Twillight Zone – sendo até bastante semelhante ao famoso episódio “The Invaders”[15]. Neste episódio conta-se a história de uma mulher que, estando numa quinta praticamente desertificada, tem de se defender de uma invasão de pequenos astronautas. Em ambas as obras é enfatizada a dissimetria entre um pequeno robot astronauta – desumanizado e visto como intruso – e o universo gigantesco de uma cozinha – espaço por excelência de referência humana e familiar.
Noutra versão ainda, “Norddikka” – a apresentação mais recente de Ballettikka Internettikka, realizada na passagem de ano de 2008 para 2009, e que teve lugar no glaciar Olav V Land, na Noruega, junto ao oceano Antárctico – é feita uma alusão ao imaginário televisivo da chegada à lua e aos passeios lunares de Armstrong.
Mas se até mesmo essas imagens históricas (as de Armstrong) são muitas vezes questionadas na sua veracidade, então todo o nosso imaginário pictórico já há muito que é invadido pela “paixão pelo Real”. Ao relacionarmo-nos diariamente com uma grande variedade de meios de comunicação, inevitavelmente os seus conteúdos acabam por ser incluídos no nosso imaginário, na nossa memória[16].
Ainda Žižek, nas suas considerações sobre o ataque ao World Trade Center, acrescenta que estamos não perante o “Real” que invade o nosso imaginário mas:
«Muito pelo contrário, era antes desse evento [WTC] que vivíamos numa realidade social em que não apreendíamos os horrores do Terceiro Mundo como parte integrante da (nossa) realidade social, como qualquer coisa que só existia sob a forma de aparições espectrais televisivas (…) não foi a realidade que irrompeu a nossa imagem, foi a imagem que irrompeu na nossa realidade.» (Žižek, 2002: 32)
Este “real” reproduzido por Stromajer só tem lugar na interface do computador aquando da transmissão da performance, na sua estética de guerrilha. Tendo em conta que o público só acede a esta através do computador, é por intermédio das imagens capturadas – e não através da performance em si[17] – que os artistas tornam acessível ao espectador a leitura “low tech solutions for intimate guerrilla strategies”.
Para Bojana Kunst esta estratégia de guerrilha se centra sobretudo no desejo de performatizar e de estar ligado:
«The guerrilla performance with the help of wireless mobile connection is done in the name of the desire to perform, but what is performed here is exactly the desire itself; the desire to be there, which is today very often the same as being connected» (2007: online)
Será então possível que em Ballettikka Internettikka o impulso para a acção sobre o real não seja mais do que o “desejo” de representação e partilha de um ideal performático, ainda que terrorista? E se é o desejo que faz catapultar a performance, não será a “acção sobre o real” um engodo que faz com que o espectador se ligue (conecte) a esta?
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O desejo da conectividade
Antes de mais, convém então perceber que noção de “desejo” é esta e como ela se manifesta artisticamente na obra. Podemos desde já reconhecer que este desejo pode assumir duas vias: a primeira prende-se com o impulso para a performance (o artista está em representação de todos os artistas que desejaram – e desejam – actuar em determinado local ou evento). A segunda diz respeito ao desejo, comum ao performer e ao espectador, de estarem juntos no momento da conectividade técnica, idealizada como sendo uma ligação humana.
Este desejo de performatizar é referido inúmeras vezes pelos artistas de Ballettikka Internettikka. Ao levarem a cabo a sua estratégia de guerrilha, Stomajer e Zorman não estão mais do que a (procurar) realizar o desejo de todos os artistas. Este desejo prende-se mais com a dimensão mítica da obra do que com a possibilidade de afirmação (statement) politica. O que temos neste desejo de performance é a integração da mitologia e da tragédia nas artes tecnológicas.
Com isso queremos dizer que os contextos narrativos de Ballettikka Internettikka estão muito próximos dos encontrados na ideia clássica de tragédia[18]: o confronto entre o indivíduo e a sociedade, ou entre herói e deuses. A grande diferença está no facto de os conteúdos morais ou éticos da tragédia clássica serem substituídos pelo conceito subjacente à obra. Estes “heróis” (Stromajer e Zorman) não pretendem a resolução do conflito, mas sim evidenciá-lo (paixão humana), mostrar que ele existe – seja ele qual for[19] –, i. e., mostrar a acção.
«Quando afirmamos que a experiência do trágico é uma experiência do irreparável, porque a acção é seguida, sem desvios, até o herói estar morto, estamos tomando uma parte pelo todo, o herói pela acção. Pensamos na tragédia como aquilo que acontece ao herói e, no entanto, a acção trágica usual é aquilo que acontece por meio do herói.» (Williams, 2002: 80)
Em contrapartida, este “impulso” para o conflito e para a acção só passa a ser válido quando é exposto a alguém, quando há testemunhas (espectadores) – de outra forma não se poderia propagar o mito. Espera-se que esse alguém esteja do outro lado, ligado – pois corre-se o risco, nas performances online, de não estar ninguém do outro lado. De certa maneira “deseja-se o ‘Outro’” na ligação.
Já foi dito anteriormente que em Ballettikka Internettikka a relação com o público é uma relação entre humanos (entre performer e espectador)[20], estando no entanto dependente dos meios tecnológicos que permitem a ligação online.
O público só pode aceder à performance se também possuir as ferramentas tecnológicas necessárias (computador, ligação à Internet e, por vezes, também a instalação de software que permita a visualização). O que actualmente não nos parece espantoso ou impossível: essas ferramentas há muito que deixaram de ser exclusivamente ferramentas de trabalho (se é que algumas vez o foram), sendo plataformas de interacção social, de divertimento e de prazer.
Morley acrescenta que os novos meios de comunicação estão domesticados e personalizados, fazendo parte da nossa identidade[21]:
«Clearly when we come to the era of the mobile phone (…), not only is the technology entirely personalized, but it is treated by many of its users as just as much a “bodypart” as their wristwatch» (Morley, 2007: 205)
As máquinas (computadores, telemóveis, televisão, etc.) são extensões do nosso corpo, da nossa memória, e também dispositivos que nos permitem chegar ao Outro, mesmo que, como menciona Bojana Kunst, no texto “Quero partilhar-te – que me fazes? – aterrado e imóvel: o corpo íntimo”, esta seja apenas uma possibilidade ilusória provocada pela tecnologia (Kunst, 2002: 248-249). Mas este também é o lugar de fascinação pela conectividade tecnológica. A possibilidade de estar ligado ao Outro é utópica, pois ela corre o risco de ser unilateral – já que durante a performance o espectador pode ligar-se e desligar-se da acção em variadíssimos momentos e, depois desta, o que resta é uma gravação em vídeo e não a apresentação original, feita em tempo real.
No entanto, é na utopia de aceder ao espaço íntimo do “outro” – o artista mostrando-se e permitindo ao espectador ser um voyeur –, que a performance online é vivida.
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Imaginário íntimo
A companhia de teatro Inglesa Force Entretainement apresentou recentemente, como parte da programação de PACT Zollverein (Essen, Alemanha), a performance “Speak Bitterness”. Esta consistia numa ideia muito simples: seis actores cuja tarefa seria a de lerem várias confissões, durante seis horas. Para além da sua apresentação em palco, foi também transmitida ao vivo pela Internet.
A peça em si não é extraordinária ou altamente criativa, nem mesmo a forma como foi capturada para a Internet – apenas uma única câmara, que se manteve fixa, e que de tempos a tempos alternava entre planos aproximados e planos gerais. Mas havia nesta performance, ilusoriamente descarnada de artifícios, algo de verdadeiramente íntimo e humano, levando o espectador a querer ligar-se com os actores, que no final de seis horas de representação não conseguiam esconder o cansaço. É um teatro ardilosamente “não-teatro”, que se quer aproximar do “real”[22].
A performance digital retoma assim a ideia primária do teatro: mostrar o humano, a condição humana. O “palco virtual”[23] é propício à criação e propagação de um imaginário: ao mesmo tempo que assume a experiência tecnológica, esconde-a e insinua-se como um questionamento ao espaço íntimo e às mutações da experiência moderna.
Ballettikka Internettikka, por outro lado, confronta-nos com os mitos e as utopias modernas, transfigurando para a nossa experiência estética as nossas expectativas face a uma forma de pensar, cada vez mais maquinal, e de viver o quotidiano, cada mais aberta às inovações tecnológicas. A sua estética de guerrilha é o lugar de provocação, paródia ao “efeito do real”. Essa provocação está nas apresentações onde, por exemplo, durante 30 minutos é transmitida a imagem de um robot estático, sendo-lhe dado o nome de “Stattikka” – com o subtítulo “The robot often cries. Why shouldn’t you?” –, e, acima de tudo, está no uso irónico que faz da tecnologia em cada performance.
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Bibliografia
Bertrand Gauguet (2003) “Quelques notes sur intima.org d’Igor Stromajer”, in Intima Virtual Base, online in www.intima.org/bfp.html
Bosma, Josephine (2002), “Claiming the Stage: Ballettikka Internettikka pt 2” in Cream N.º 7, Amesterdão, online in laudanum.net/cream/back_issues/cream9.html.
Kunst, Bojana (2007), “Ballettikka Internettikka” in Intima Virtual Base, online in www.intima.org/bibk71.html.
Laurel, Brenda (1993), Computers as Theatre, Reading, Addison Wesley Publishing Company.
Morley, David (2007), Media, Modernity and Technology: the Geography of the New, New York, Routledge.
Schechner, Richard (1994), Performance Theory, New York, Routledge.
Seaver, Michael (2006), “Ballettikka Internettikka: Pranksters or Visionaries?” in Dance Magazine (www.dancemagazine.com) New York, USA, online in www.intima.org/dmny.html.
Stone, Allucquère Rosanne (1996), The War of Desire and Technology at the Close of the Mechanical Age, Cambridge, Massachusetts, The MIT Press.
Stromajer, Igor (2001-), Ballettikka Internettikka, online in www.intima.org/bi.
Miranda José A. Bragança de, e Cruz, Maria Teresa (orgs.) (2002), Critica das Ligações na Era da Tecnologia, Lisboa, Tropismos.
González, Anxo Albuin (2007), “Algumas considerações sobre a possibilidade de um teatro virtual”, in Torres, Rui e Petry, Luís Carlos (orgs.), Cibertextualidades, n.º 2 (“Ciberdrama e Hipermedia”), Porto, Ed. Universidade Fernando Pessoa, pp. 35-49.
Williams, Raymond (2002), Tragédia Moderna, São Paulo, Cosac & Naify.
Žižek, Slavoj (2002), Bem-Vindo ao Deserto do Real, Lisboa, Relógio d’Água.
[1] A peça, desde a sua criação em 2001, conta com várias versões, apresentadas e adaptadas a diversos contextos sociais, artísticos e espaciais.
[2] Linguagens usadas para descrever as páginas da World Wide Web.
[3] A performance contemporânea, desde os anos 60, tem questionado este modelo clássico do lugar do espectador, colocando-o por vezes no meio da acção. Mas essas experiências ainda não são suficientes para alterar a tradicional dinâmica actor/espectador.
[4] Sobre este assunto, ver Computers as Theatre de Brenda Laurel.
Bertrand Gauguet, citando Stromajer, apresenta no seu texto “Quelques notes sur intima.org d’Igor Stromajer” a seguinte definição: “intima.org est un laboratoire intime qui s’adresse aux symptômes traumatiques et politiques sur un niveau très personnel, comme base de données de la mémoire émotionnelle ou de l’histoire individuelle.” (2003: online in www.intima.org/bfp.html)
[6] Nesta segunda versão, a performance foi apresentada clandestinamente na cave do teatro Bolshoi, em Moscovo. Entre outros locais “invadidos” constam o teatro La Scala (Itália), em 2004 e o gabinete do director de dança do Teatro Nacional em Belgrado (em 2005).
[7] Com excepção da versão “VolksNetBallet”, cuja estrutura se baseava na transmissão de seis pequenos vídeos (seis actos), cada um com a duração de um minuto. Devido à necessidade da montagem, a transmissão era feita com dois minutos de delay. Mas até mesmo esta edição “caseira” dos vídeos era integrada na performance. Stromajer explica-nos o processo: «All six videos were edited live in-camera, using only STOP and REC functions, then immediately converted to Real Media files using Real Producer, and finally, transferred to the server for viewing.» (2006: online in www.intima.org/bi/vnb).
[8]De forma a manterem o aspecto rough da imagem, Stromajer e Zorman exploram diferentes ângulos nos enquadramentos das imagens (“BEO Guerrиllиkka”), usam mais do que uma câmara, colocando-as em locais inesperados e alternando planos de imagens entre elas (“VolksNetBallet”), ou mesmo escolhem locais para a apresentação que são, muitas das vezes, bizarros (“Norddikka”).
[9] Andreas Broeckman, director do Berlin Transmediale Festival, descreveu em tempos a peça como “classical net art conceptualism”. No entanto, Josephine Bosma critica esta afirmação: “Yet the work of Stromajer does reach beyond where other net artists tend to stop. Igor Stromajer is one of those net artists who are not afraid to take the conceptual space of net art outside the technological space of the Internet or the world wide web.” (2002: online in laudanum.net/cream/back_issues/cream9.html).
[10] Os espaços invadidos (teatro Bolshoi, La Scala, etc.) são considerados espaços “míticos”, locais por onde passaram figuras importantes das artes performativas do século XX e por isso desejados por qualquer performer (esta temática é desenvolvida na secção seguinte). O mesmo se pode dizer do ideal de guerrilha presente na peça: a figura do transgressor, do mártir que se expõe por uma causa, assemelha-se à do herói mítico.
[11] Richard Schechner, em Performing Theory, comentando sobre a teatralidade das notícias jornalísticas apresentada por Robert Brustein: “he [Brustein] is wrong when he says that “news” and “theatre” should be kept distinct. How can this be when the two are inherently interdependent? Both are public, action-centered, and crisis-seeking. Furthermore, as the means of news transmission abandons print and relocates in the visual media, they approximate theatre at the technical level.” (1994: 149)
[12] Esta apropriação do acto terrorista aparece até mesmo na nomenclatura usada para o título do vídeo de apresentação da obra Hand-Grenade (www.intima.org/bi/brvi/hand_grenade.html).
[13] “We’ve come here to die!” proclaimed Barayev, the Chechen terrorist leader, as the group disrupted the Moscow performance of the musical Nord-Ost. “We’ve come here to dance,” wrote Stromajer, as an Internet link was established with the Bolshoi Theater and the wireless ballet began, seven months before Barayev’s dying” (Stromajer, 2003: online in www.intima.org/bi/brvi).
[14] Definidos por Stromajer como “lonely and sad icons, automatized units, which had no major problem to invade the kitchen of the famous Teatro alla Scala and dance the net-ballet there. Toys transform into guerrilla-ballet dancers.” (2004: online in www.intima.org/bi/bi-ir).
[15] Episódio 15, 2.ª temporada.
[16] Invocamos aqui David Morley em Media, Modernity and Technology: The Geography of the New, ao considerar que “One question here is that of how our personal memories – especially of childhood – are formulated around media experiences, such as emblematic programs and television characters” (Morley, 2007: 204).
[17] Execução e interpretação da peça.
[18] Sobre as mutações da tragédia, ver Tragédia Moderna de Raymond Williams.
[19] Stromajer usa como quote line a famosa frase de Churchill “We shall fight them on the beaches. We shall fight them on the landing grounds. We shall fight in the fields and in the streets, we shall fight in the hills. We shall never surrender.” Mas Churchill, ao afirmar isto, estava em plena guerra (II Guerra Mundial). E Stromajer, em que guerra está?
[20] Diz-nos Allucquére Rosanne Stone na introdução ao seu livro The War of Desire and Technology at the Close of the Mechanical Age: «Computers are arenas for social experience and dramatic interaction, a type of media more like public theatre (…). Inside the little box are people.» (Stone, 1996: 16)
[21] Estas questões de alterações de identidade, de acordo com Rosanne Stone, dão-se ao nível da transformação na relação entre o que é apreendido como o Eu (self) e o Corpo, e entre o Indivíduo e Grupo.
[22] Essa ilusão é conseguida através da crueza do palco apenas iluminado por luzes florescentes de cozinha, pela captação vídeo pouco elaborada e pela leitura “sem interpretação” do texto feita pelos actores.
[23] A noção de palco já é em si virtual, isto é, os actores vivem e desempenham acções num mundo imaginário, como se ele fosse real. Ver Computers as Theatre, de Brenda Laurel.
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© Eunice Gonçalves Duarte
6º Congresso SOPCOM e 8º Congresso LUSOCOM
A Escola de Comunicação, Artes e Tecnologias da Informação da Universidade Lusófona irá acolher o 6º Congresso SOPCOM, o 8º Congresso LUSOCOM e o 4º Congresso IBÉRICO entre 14 e 18 de Abril de 2009, sob os respectivos temas, ‘Sociedade dos Media: Comunicação, Política e Tecnologia’, ‘Comunicação, Espaço Global e Lusofonia’ e ‘Redes, Meios e Diversidade Cultural no Espaço Ibérico’.